
“Seja por meio da imagem, da escrita ou da fala, a linguagem humana é imbricada por abstrações que nos permitem evocar objetos distantes, criar hipóteses e pensamentos, estabelecer hierarquias e assim por diante. Ela é o ponto de partida para toda criatividade e desenvolvimento humano, mas é um processo coberto por uma dimensão política que impõe e perpetua seus mecanismos de poder, violência, silenciamento e exclusão.”
Foi nesse contexto que Giselle Beiguelman desenvolveu o projeto Botannica Tirannica, concebido para o Museu Judaico de São Paulo, em 2022. Por mais de um ano e meio, a artista e professora de arquitetura ampliou seus campos de pesquisa para investigar a genealogia de preconceitos no mundo botânico a partir da nomenclatura popular e científica de plantas.
Judeu errante (Tradescantia zebrina), Orelha-de-judeu (Auricularia auricula-judae), Maria-sem-vergonha (Impatiens parviflora), Bunda-de-mulata (Thunbergia alata), Peito-de-moça (Solanum mammosum), Malícia-de-mulher (Mimosa pudica), Catinga-de-mulata (Tanacetum vulgare), Ciganinha (Calliandra dysantha), foram algumas das plantas mapeadas que compuserem a mostra em seu Jardim da resiliência.
Classificadas por procedimentos discriminatórios, essas espécies são nomeadas de forma ofensiva a grupos sociais como mulheres, indígenas, negros, ciganos e judeus. Muitas delas são consideradas “ervas daninhas” a ser perseguidas e erradicadas. Seu trabalho nos indica como a linguagem humana, permeada por um inexorável processo de dominação, mais do que criar pontes entre seres e meio ambiente, constrói artificialmente o que entendemos por natureza.
Com o intuito de questionar essa genealogia, Beiguelman lança mão de um programa de Inteligência Artificial com o qual cruza e combina diversas espécies dotadas de nomes preconceituosos, liberando novos campos poéticos e novos sentidos políticos. Assim, na série Flora Mutandis vemos nascer híbridos, plantas a um só tempo reais e inventadas, verdadeiras e falsas, as quais desfazem o impulso taxonômico por meio de seus corpos estranhos e de suas nomenclaturas impronunciáveis.
Finalmente, segundo Ilana Feldman, curadora da exposição no Museu Judaico, se a linguagem produz mundo e realidade a partir de seus rituais de nomeação, no contexto da botânica hegemônica e do racismo científico essa nomeação é também uma forma de dominação. Como afirma a artista, a nomenclatura é um ritual de apagamento de tudo aquilo que é diferente, diverso, distinto, fora do padrão. Frente às forças taxonômicas, aos binarismos impostos e às identidades fixas, Botannica Tirannica recupera a errância e o nomadismo da tradição judaica para ler as plantas, em particular as “daninhas”, como formas de vida resistentes e resilientes, criaturas ora infiltradas em jardins reais e digitais. Desses jardins, elas não serão eliminadas.
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Você acaba de ler trechos do livro Eco-Lógicas Latinas, escrito e editado por Fernando Ticoulat, Marina Dias Teixeira e Yasmin Abdalla. Descubra outros artistas e obras garantindo sua cópia da publicação.